25.1.09

a devoção segundo consta...


A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida. - Clarice Lispector



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. Ele caminhava pardo e com aquela cicatriz entre as sobrancelhas. Era parte dele, já sabia. Vinha fresco. Pá dá dí dá dá, vinha fresco cantarolando e o frio parecia não o incomodar. Um paninho fino, uma escarpe quase feminina abraçava o pescoço. Abraçava como o cheiro que dele vinha, um perfume que só ele tinha, parecia arreigado em mim quando o via, percebia de longe o cheiro que dele vinha... Era meio dia. Passava ali a diante um senhor que de qualquer não tinha muito. Era ávido por qualquer coisa que eu não havia percebido o que e logo depois dele passou Luí. As catedrais eram quase azuis, “bobagem”, ouvia já sua voz do lado de lá, “bobagem!” repetia em tom de Luí, o que seria tom de Luí? Tom de quem faz pouco caso, pouco a pouco faz-se de desentendido. Faz-se de... quem. Quem? Quem é, qualquer coisa que seja e que é. Entendi. Ele resplandeceu em sol assim que pisou na calçada em que eu estava estacionada. “Aprendeu?”, o que? Perguntei afoita. “o caminho”. Como se não soubesse desde sempre. Tirou um cigarro amassado do bolso. “o último” e o acendeu contra o vento, era dessas. “Pronta?”, claro. Luí parecia saber onde me levava-- mesmo no fundo achando que não -- e como todas as outras vezes eu deixava. Me arrependia no meio do caminho, era sempre uma caminhada longa, gostava de se embrenhar pelas ruelas quase medievais, “sim, medievais são” enquanto minha cabeça percorria seus detalhes mais meus, seus fios soltos no vento frio que cortava o meu rosto mas não parecia o abalar. Luí era como o chamava mas esse não era seu nome. Era inventado. Nunca havia dito o meu nem sequer de onde vinha, mas ele sabia que não era dali, como ele também não era, mesmo assim o mapa parecia ter sido inventado a partir de sua mente perversa, sempre pronta para me manter atenta. “viu aquilo?” o que? “nada”, se me perdesse riria da minha inocência, precisava me manter acordada, ele gostava de me iludir sem meias palavras, eram das inteiras que gostava, as devorava. Luí, gritei faceira, queres sentar ali?, pelo tom da minha voz que o acompanhava sabia que me referia ao café que levava o nome de Cafe Des Deux Margot, “besteira”. Continuava a passo de rei, “tens algum cigarro?”, não fumo, Luí. Ele sorria. Seu perfil refletia em vitrines esfumaçadas, nariz grego e tosco quanto tosca era a minha alma, começava a ameaçar algum tempo ruim. Suas mãos buscavam pelas minhas detrás de suas costas severas, agarrava cada centímetro dele que conseguia com minha pele, músculos, unhas e ossos frios, “não me deu nenhum beijo ainda? Que acontece com o seu bom senso?”, atrevo a querer mais de Luí, quieto em tempo bom, cinza... bom. Cruzamos a Jacob. Percebia aqueles olhos querendo ver mais do que notavam as circunstâncias, logo estaria mais próxima do seu corpo, era assim que acontecia: deixava com que o tempo de passeio fosse alguma coisa como um prólogo para o que sabia que viria logo adiante, um braço em volta da minha cintura... Luí sorriu e pela primeira vez naquela tarde olhou firmemente em meus olhos. Era para tirar meu fôlego mas não o fez, regenerava o que era para ser meu. Anteciparia minha dor no peito e a trocaria por sonhos momentâneos. Ah... teria eu pena de mim mesmo? Luí saberia. Luii, teimava no i... “Pare aqui”, aqui? “é”, uma chuva miúda me forçava a contrair os músculos da face e Luí colocava suas mão pesadas sobre os meus olhos, respirava devagar enquanto seu sopro embalava as oscilações do que saía de sua boca, “não adianta tentar olhar”, não tentaria... Gostaria de ter alguma intuição divina que me preparasse para aquele indivíduo que se desdobrava diante de mim, do meu peito escancarado e sem medo. Estaria pronta para desatar os nós que me prendem a mim mesma? Estaria se Luí escrevesse assim. Ele escreveria. “agora, pode abrir”, o sol, “isso”, o sol morrendo por detrás da cidade, “é o milagre da paciência”... o respirar prendia nós dois em uma pedra que parecia flutuar, “é um milagre, vês?” vejo. Enquanto o fulgor acrescentava um tom ainda mais profundo a tudo que adornava com rigor, Luí me guardava em seus braços, ele havia cedido sua posição para que eu tornasse a ser primeira, primeira naquela hora de seu dia em seu tempo, primeira em deixar o sol se deitar. Eu aceitava. O milagre era também meu.



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