27.1.09

a devoção segundo consta... - continuação?



Eu fervilhava o suficie
nte para a água nunca ferver nem derramar. - Clarice Lispector












? Os braços haviam desaparecido. Está aqui, Luí? Luí? Nada. De repente o escuro se tornou norma e meus olhos se arregalaram buscando por ele. Acalmaria minhas dúvidas se tivesse por minha vida alguma ainda presa por um fio amarrado em volta do pescoço, mas não, Luí era nome inventado. Sua história mudava a cada segundo, sua origem variava de árabe a sul-africana. Sua profissão muitas vezes moldava seus lábios, seria ator? Não... convenhamos, com aquela fixação com o diverso deveria ser ator. Não era. Muitas vezes era mecânico. Pararia diante de um senhor com problemas no seu carro antigo enquanto fumava apressado, levantando o capô amarelo e falando com categoria exatamente o que estava errado com o motor do pobre. Por vezes era pescador. Muitas vezes me chamava no cais enquanto ainda estava a puxar a rede de volta, ele e mais alguns. Não sabia nome de ninguém, reparava em tudo de longe, ele percebia quando chegava logo e assim que terminava corria a minha direção, nunca perto de cheirar ao que acabara de pescar, o que me parecia suspeito -- era tudo muito suspeito, tanto quanto eu o era. Luí era uma idéia e no momento que finalmente aprendesse a entender isso, por ventura de minhas impossibilidades o teria longe e ao mesmo tempo invariavelmente próximo a mim. Fechei os olhos contente. Satisfeita por algum tempo. Me forcei a me forçar, deixei com que tudo que Luí decidisse como meu destino fosse meu e pronto. Era. Aqueles mesmos braços -- minto, talvez fossem outros, talvez tudo era uma outra faceta de Luí, ou da idéia que ele como nome mas não como um poderia vir a ser -- me envolveram como algo que pedi, um pedido assim cálido, num momento de lucidez e ele prontamente resolveu me atender. "Pronta?" agora sim Luí, "então venha". Eu fui, e pela noite que dourada parecia ser entrei, sem meios de pedir socorro ou dizer até mais, não saberia se seria a última vez mas pressentia que seria, de qualquer forma seria. Em seis minutos -- eu havia contado -- estávamos sobre a Pont Des Arts e as grandes mãos de Luí rodeavam minha cintura. Enquanto a aragem que permanecia constante mantinha nossos rostos livres de estorvos menores, suas mãos me mantinham firme e presa a sua essência que era o que me importava e nada que tivesse nome ou timbre. Seus olhos rogavam por mais, eu os percebia, seu rosto quase disforme por causa de tamanha junção de ideias em seu ínfimo ser, a cicatriz entre as sobrancelhas... Murmurou em seguida coisas obscuras, palavras de um trem que não havia tomado mas que sim, havia levado seu eu mais precioso, seu medo. Me deixou a postos, me manteve sã e sentou sobre a mureta que mantinha as pessoas dentro da passarela. Não temi, não deixei oscilar o meu meio entre todas as coisas. Ouvi. "Nunca quis mais do que viver", seus pés tocavam de leve a estrutura de cimento e sua massa parecia insignificante ao espaço que ocupava, tudo girava em torno dele, "mas viver apenas é o mal querer daqueles que não podem", pouco entendi daquilo e lembrando-me agora sei que não prendi absolutamente nenhum significado do que partia de seus lábios e agradavelmente viajavam aos meus ouvidos até então subalternos e idealistas. Minhas penas se dissipavam, o vento não poupava ninguém. "Por isso que, se pareço vão aos teus olhos, não olhe por cima. Veja mais adiante." Seus olhos se voltavam aos meus, sua boca pronta para falar não exalava, compreendi. Não vejo por cima, Luí, "vê além?", mais do que isso... vejo o que quero ver e nunca o que me parece ser, "seria perfeito se não fosse seu, Manú" mas é. E era. Seria o perfeito sobre o canal, seria a mistura de falta de cores que transformavam o dourado? Seria. Era qualquer que fosse a pessoa que eu era para ele que importaria. Luí me agradeceu. "Manú?", sim Luí, "vamos embora daqui." E fomos.



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