26.6.07

A História que guardei no seu bolso - II


As portas de vidro da sala que davam para a pequena varanda bateram com violência. Os dois continuavam conversando e ela continuava os observando. O amor pode sim ser tão intenso e repentino, como aquela ventania irregular. A televisão ainda estava ligada, o som que tocava música de filme antigo também estava ligado e ele ainda tinha um copo de café na mão. O marido tão mais jovem que ele estava feliz pela visita, mas realmente não tinha entendido nada. O olhar dele ainda molhado, ainda vermelho cruzava o dela, os olhos ardiam em negação, procuravam qualquer coisa que o tirasse daquela libertação tão dolorosa, algo que o colocasse de vez no calabouço.

Os dois conversavam.


Ela fechava as portas.


Seu marido pegou uma xícara no armário e perguntou o porquê da visita. Seus olhos procuravam pelas colheres, ela prontamente trouxe uma pequenina com o cabo azul e girou o café que já estava com açúcar.

"Ele veio pra dar carinho, é um anjo."

"E você que também é um anjo faz café e torradinhas pra ele!"
"E pra você, amor..."

"Pra mim você faz sempre..."
"Verdade"


Sem saber como todos se entendiam tão bem, o vermelho dos olhos dele se transformaram em olhos serenos de atenção. Era tão bonito ver os dois, como só os dois eram. Era bonito ter os dois juntos próximos dele como se aquela ventania lá fora representasse algo, um adeus talvez. O café havia sumido da xícara no tempo daquela curta conversa.


"Quer mais?"
"Não, não. Acho que vou embora agora."
"Não vai não, cara. A ventania derrubou umas árvores no caminho, a estrada de volta tá enterditada."

A televisão teimosa não falava do que se interessava. Ele ficou quieto sem entender e ela já pressentia que algo iria acontecer.


"Então fica aqui hoje. Amanhã você vai! Você não viajou duas horas só pra passear, vai ficar..."

"Duas horas? Não... quando a gente tem pelo o que ir o tempo passa mais rápido."
"Mais rápido cara? Achei que passasse mais devagar..."


Em tempos idos tudo o que ele a perguntaria é "porque você faz isso comigo? Ama de longe, quer de perto o tempo todo e espera por algum sinal pra eu te dizer 'vai lá amor, ame mais porque é só isso que você pode fazer' ". Mas agora não eram de provas que ele precisava e sim ver de perto de onde vinha todo aquele empenho. Seu amigo era um sábio, realmente. Mas ele a amava e não era de longe. Ele estava ali. Ela o amava também, como sempre disse e tinha finalmente os dois juntinhos na mesma sala.

A ventania lá fora tinha se transformado em chuva cinza e pesada. A luz acabou de repente e o silêncio da falta de televisão e som fez o bule na boca do fogão apitar mais alto.

"Ai ai... Bem hoje que eu precisava me internar no estúdio."
"Se interna aqui na sala."

"Vou fazer o café, Lee. Onde está o pó?"
"Sabe fazer café a moda antiga, Louis?"
"Sei que tem que por água no pó e deixar escorrer... É assim?"
"Bem hoje que tinha que gravar... Saco!"
"Não xinga, Tom. Louis, deixa eu arrumar isso pra você"

"Faz mais torradas, Lee?"

"Faço..."


Enquanto a chuva caia, o marido tirava o violão da caixa na sala. Ele a ajudava com o café se divertindo com seus braços que se esbarravam na cozinha. O olhar dela era bem o dela, daquele doce que ele gostava e que tinha visto nele mais do que qualquer um, afinal tinha escrito aquele texto pra ele. A imagem dos olhos de Daniel Day-Lewis na tela voltavam a cabeça dela, Juliette Binoche agora chorava pedindo pra ele ficar longe.

O café cheirava forte.


"Amor, que cheiro bom!"

O violão começava a tocar, o ritmo da chuva lá fora o acompanhava. O bule estava cheio e as torradas no forno, com azeite e orégano.


"Básico."

"Básico, mas você não comeu as que eu ofereci."
"Não como quando tenho algo importante pra falar."

As vozes dos dois estavam longe na cozinha.
O violão ficava a espreita. Os olhos do marido procuravam o da mulher. Ela os encontrava enquanto falava baixinho com ele.

"Ainda tem coisa pra falar?"

"Tenho. Mas amo demais o homem que vive com você."
"Também o amo. "

"Não como a mim."
"Essas coisas não se medem"

"Se sentem, eu sei."

"Você sabe"
"E você me salvou. Precisava falar..."

Ela sabia e aumentava o tom para falar com o seu marido que estava longe.

"Tom, quer café?"
"Quero amor, e torradas!"

Todos os cafés da vida, servidos por ela eram os melhores. Servidos pelos dois, amor e mestre eram mais do que tudo pra ele. Enquanto dedilhava as cordas do violão ele os via saindo juntos da cozinha e pensava "Ah sim... como são importantes pra mim...".



*foto de Tudor Hulubei