31.3.09

a devoção segundo consta... - o peso tão leve que




Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si. - Clarice Lispector





á foi, a relva que passava passaria suave como as mãos de Luí nos meus cabelos. Eles eram dele afinal do jeito que precisavam ser... A pena voava simples, Luí a agarrou antes que pela janela se perdesse. Estava claro. "Tome, não a perca está bem?", aceito... A pena que sem cor agora morava em minha mão esquerda enfeitaria o bolso dos meus jeans desbotados e enquanto as paisagens se misturavam em transbordantes refeições visuais, eu me acalmava. Minha vida afinal estava longe dali e se assim fica, assim permanece fora do meu alcance. Luí espreitava possibilidades enquanto caminhava por onde dava. Percebia de antemão cores irreais, dadas apenas a sua retina cor do infinito que sem modéstia registrava pura e simplesmente tudo aquilo que gostaria de lançar suas mãos sobre. Tinha mãos de qualquer coisa que até então chamava de deus. Não um deus qualquer, mas Deus. Aquele para quem muitos oram todas as noites e em um ou outro domingo cheios de ilusões doloridas, mas entre Deus e eu não haviam mistérios e eu o chamava de Luí como ele me chamava de você "É aqui", aqui? Onde? "Onde acabamos de passar, é ali que descemos", mas já passou Luí... Não esperava muito. Sua mão pesada agarrou a minha e em um salto largamos o trem para trás. Enquanto rolava pela terra quase molhada pensava em plumas como aquela que morava no bolso e assim que tudo parou de girar, respirei fundo. O cheiro de chão fresco. Não demorou muito para que o percebesse de pé me observando enquanto mastigava qualquer coisa. "Pronta?", claro! A mão - ela mesma - estendida diante de mim, e como quem não diz nunca a deus eu disse sim.

***


A estradinha era de terra. Passavam por ali alguns vários bois, talvez algumas dóceis cabritas e uma meia dúzia de senhoras e suas roupas para lavar, entre alguns e outros Luí e eu caminhávamos sem muito o que dizer.

Quando o sol começava a serrar seus olhos, Luí me alcançava.

"Tem alguma fome?" Não. "Nenhuma, nenhuminha?"... Creio que não Luí, porque? "Eu tenho!", mas que horror! Você não é todo poderoso? "Deixe disso..."

Minhas secas gargalhadas faziam a sinfonia que tocava a nossa volta, em um mundo sem muitos mistérios - e por isso mesmo tão misterioso em sua fragilidade - parecer mais do que um acontecimento: tudo aquilo fazia parte de quem quer que nós chegaríamos a ser. 

"Amor, ouve tudo respirar a nossa volta?"

Ouço.

"Tem algum problema em deixar esse mar adentrar tua costa?"

Não...

"Pois deixe. Nada poderia te fazer mais minha do que isso."

O mar... que não queria... Seus olhos se encheram de um querer repercutido e meus passos sussurravam ligeiros, era de se admirar um homem que chorasse com a dor da despedida do sol. 

"Ouve bem?"

Ouço, Luí.

"Sou eu"... ele parava e se voltava a mim. "E você."

E o rosto se transformava em calmaria atormentada, ele deixava o tempo que inventamos revolver meus mistérios, e o tempo era nosso bom e velho primo. Tirando as mãos dos bolsos e as trazendo ao meu rosto espelhado, ele me beijou os lábios.

"Vamos indo..."

Pra onde vamos, Luí?

"Para logo mais."

E lá tem cama pra deitar?

"Tem mais do que uma cama, senhorita..."

Talvez o inferno pra aquecer?

"Você está bem além de mim... bem além de tudo o que está logo ali..."


Enquanto caminhávamos seu braço me tomava como um casaco nos toma numa noite fria, e ela logo viria... Tudo mais ficava para depois, como era do estilo Luí de ser. Eu aceitava bem calma como deveria não estar minha pobre vontade falida de tanto querer lutar contra o grande tudo que ele representava, e a noite? Ah... Essa sim nos engolia inteiros e sem revoltas.


***