4.4.09

a devoção segundo consta... - por aqui, manú



"Expresso a mim e a ti os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza profunda" - Clarice Lispector







uí abria calmamente a porta como se dentro de sua inaptidão para realmente aceitar o fato de que talvez não soubesse o que estava fazendo, também existisse a certeza de que tudo ficaria bem. "Afinal, a porta já estava aberta..." Nós entramos. Era uma casa certamente bem cuidada e com algum receio temia pisar em solo alheio de forma que acabasse assustando os moradores, mas Luí simplesmente entrou batendo os pés contra o batente da porta, "pra sacudir a areia fora", com uma segurança de estremecer meus pobres ossos. Luí, mas como que entramos assim em casa alheia? "Fique tranquila!". As grandes janelas laterais deixavam uma vista encantadora desaguar pelo grande antro que aquela imensa casa parecia ser. Apenas um cômodo, é o que achamos. Em um canto uma cozinha improvisada, aos fundos um banheiro quase inteiro aberto que possuía apenas uma pequena cortina envolta da banheira que deveria ser de cobre e muitas janelas, por todos os lados... Luí parecia conhecer o lugar, seus olhos percebiam tudo com naturalidade como sempre foi. Nossas escapadas anteriores eram sempre curtas, nossas conversas, sempre contidas, meus olhares sempre aflitos mas essa era mais do mesmo, era uma continuação do que nunca tínhamos coragem de fazer. Dessa vez algo tinha sido deixado de lado e nada mais poderia ser visto como um filme bom, éramos um que vivia em um fio e esse tal cordão nos servia de extensão. Enquanto vivíamos nesse fio, viveríamos por nós dois sendo um e naquela imensa sala, que era mesmo como um imenso e -curiosamente ao mesmo tempo- aconchegante quarto, seríamos a evolução dessa espécie. 


Luí arrumava as cortinas que teimavam em esconder os cantos das janelas emolduradas, eu tentava encontrar qualquer coisa que me provasse que aquilo não era um truque de Luí,  alguma armação para me fazer acreditar que estávamos simplesmente embarcando nesse ato criminoso ao invadir a casa de alguém. "Já olhou a geladeira?", a geladeira? Para que? "Veja o que tem lá". Desconfiada fui até o canto na cozinha improvisada e notei que por toda a porta fotos presas por imãs ali permaneciam, imagens colecionadas por qualquer um que fosse aquele que ali morasse. Bem no centro Luí sorria com um copo qualquer na mão, ao seu lado uma garota, a mesma presente em todas as outras imagens. Eles pareciam felizes, logo ouvi seus passos chegando perto. "Pois o que achou por aí?", Luí, quem é essa mulher? "Qual mulher?" essa, a que está contigo nessa foto? Ignorando a pergunta, Luí foi direto à parte interna da porta onde algumas garrafas de vinho estavam a fácil alcance, ele já sabia bem onde encontrar o que. "Essa...mulher é minha irmãzinha menor. Marie." Marie? Você tem uma irmã que se chama Marie? "Tenho! Porque a surpresa?"... Eu achava que você não existia. Quem não existe não tem irmã.


Um gole e ele finalmente sorria. "Pois eu não existo, Manú". Fazia tempo que não me chamava pelo meu nome e quando o ouvia assim meu, mesmo que por pouco tempo - mesmo porque o tempo era razoavelmente intolerante, ele teria dito em algum momento - algo era devastado novamente por dentro de minhas artérias e essa sangue contaminado era levado ao meu peito. Mais rápido do que qualquer nutriente que faltasse e com mais certeza do que qualquer vírus ou bactéria, meu coração era tomado por essa moléstia. Meu corpo se contraia por si e se revirava por ele. Seus lábios chegaram bem próximos dos meus enquanto sentia o cheiro forte do vinho que estava em sua mão... Que tipo de francês é você, que bebe o vinho direto do gargalo desse jeito? "Um dos melhores que há, mademoiselle Manú..." Naquela noite estaríamos bem servidos na casa da irmã de Luí - pelo que me parecia ser. Marie deveria ser feliz, não saberia dizer, mas nada arrancaria dele hoje a não ser a roupa, os sapatos e o relógio. Ah, havia esquecido de contar do relógio de Luí, ele estava sempre parado: a hora de escolha? 22h22.


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