1.2.09

a devoção segundo consta... - mais e mais...



Mas ali o sol não parecia vir de fora para dentro: lá era o próprio lugar do sol, fixado e imóvel numa dureza de luz como se nem de noite o quarto fechasse a pálpebra. - Clarice Lispector









ogo
o dia nasceria -- estremeceu Luí em tom de pressa. "Precisamos chegar lá logo", e lá seria onde Luí?, "onde quero te levar". Por um momento rápido Luí me irritara profundamente. Teria me jogado de lado, me deixado sem saber realmente o que fazer agora, afinal eu tinha uma vida. Fora dos muros dessa liberdade gratuita morava uma mulher cheia de casos e contas a pagar, histórias frívolas eretangulares cobrindo quem quer que eu fosse. Logo precisaria estar em algum lugar, marcando a data e hora de alguma forma, mas Luí calmo e febril me acanhava as demências. Me julgava incapaz de larga-lo, e eu era. Segui seus passos como se segue a uma religião tenebrosa qualquer, como quem pede por clemência. Impaciente ele debruçava sobre pontes, pulava pequenasmuretas e atravessava as pequenas ruelas sem nem notar se havia algum automóvel ou motocicleta se aproximando, me consumia a ansiedade. O Sol se preparava para entregar o seu manto a mais um dia e eu fervia, o casaco pesado já não adiantava mais. "Disse que não precisava disso", e continuávamos a correr. Logo precisaria de algo para beber, "água?" não, "então o que?" Café.


***

Os primeiros raios colaram seus hálitos matinais às grandes pedras que monumentalmente conduziam esses dois marginais pelas muralhas daquele local. Seguíamos calados. A mão que não parava de transpirar segurava a minha firme, me acalmava enquanto subíamos os degraus um por um, emitindo qualquer coisa como o som de cansaço e delírio devem ser. Pronto. "Pronto, tire os sapatos", pronto. A porta se abriu com a chave queLuí tinha presa em uma corda envolta do pescoço perfumado. Seus dedos longos passaram pelo cabelo uma última vez enquanto com a outra mão empurrava aquilo que parecia uma pesada porta de madeira antiga, como antigo tudo parecia onde estávamos. "Isso aqui é meu, pelo menos é o que diz a lei", as imensas janelas que antes haviam sido a única entrada de ar e brilho daquele edifício que outrora servia à devoção de quaisquer que fossem os santos da época, estavam todas abertas, o chão era coberto por um imenso tapete colorido,Luí largou seus sapatos ao lado da porta e mostrou onde eu deveria largar meu casaco e cachecol, o único móvel era uma peça que se parecia com um colchão, mas não tinha um formato muito compreensível. Pelo chão instrumentos e papéis, livros. "Não me canso desse lugar", eu também não me cansaria, "pois é seu também e espere, o sol está para surgir", foi quando me calei. Como um caso divino, algo como uma série de acontecimentos irracionais, a luminosidade que não era pouca entrou por todas as janelas daquela sala circular, como se a estrela mais poderosa do nosso sistema tivesse pouco prazer em entrar só por um lado, ela queria mais. Queria abraçar com seus tentáculos de calor cada entrada, prender seu intruso favorito em um salão de fulgor onde ninguém entraria ou sairia, era o que mais se assemelhava a algum poder divino e aquilo queLuí retratava em sua figura, sua pele parecia refletir o que sentia e seu corpo parado absorvia cada fio etéreo, cada palavra silenciosa. Eu me assemelhava a uma ave que presencia o indivisível e sem ter suas asas para voar aprende a calar em um canto, se redimindo diante de tamanha felicidade. O que se sente é o que se vê.Luí tinha me deixado ver enquanto as janelas se arrebentavam em luz. Eu deixei acontecer, como se quisesse permitir entrada àquele intruso que ainda mais próximo dessa grande e imensa e nula presença que era a minha deixaria com que eu me tornasse um. Não resisti. Logo o clarão seria mais ameno, assim que nos acostumássemos com a verdade. Esse tempo viria de braços abertos enquantoLuí sorria para mim, "venha, venha cá", eu fui para perto cuidando para que meus pés não pisassem sobre nada precioso, "fique comigo só hoje, só hoje, eu te peço." A pele já não transpirava mais, eu diria que sim com o olhar e ele fecharia meus olhos com um beijo em cada pálpebra, os lábios - aqueles que me encantavam - sabiam sonhar.


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