14.4.07

"Uma lembrança para Josh" - continuação...

Eu não deixei rastros, como você desejou. Um amor pra se lembrar, só isso. Um amor? Não chegou a tanto. Eu sabia quem você era, sabia que poderia te achar se realmente tentasse mas como você conseguiria me encontrar? Você não tinha nada, só um rosto. Um leve sotaque que o fizesse lembrar de algo... latino, talvez? Não... eu era tão cheia de sardas afinal! E mesmo se tivesse ouvido mais do que algumas palavras, não seria o suficiente pra saber. Aquela noite começava fria e o terror da noite é essa, entrar em suas entranhas sozinho, como se tivessem arrancado todo o ar a sua volta. O vazio é muito fundo e você não sabe onde se meteu e se meteu os pés pelas mãos.
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Você juntou suas coisas, se vestiu pensando que não seria assim tão difícil me encontrar - afinal estamos em NY, em um dia qualquer de dois mil e sete entre os oito milhões ou mais de moradores dessa enorme cidade - e desceu com aquela coceirinha de que "talvez ela tenha deixado algo pra mim na recepção". Mas era um engano doce seu, mesmo assim um engano. Colocando a sua toca preta e enfiando as mãos no bolso você saiu do hotel respirando aquele ar gelado, que cortava os pulmões mas que pelo menos era real. Pelo menos ele estava lá, o ar gelado, fazendo companhia a todos aqueles solitários a sua volta. Era tarde e o seu relógio estava atrasado. Ainda caminhando sem rumo entre as pessoas e a lembrança do que estava escrito naquela janela ainda estava viva, tinha virado fotografia em sua mente e nada apagava.
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"Não quero esquecer do rosto dela..."
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As pessoas, as luzes, a neve e o frio. Uma menina de uns catorze anos te pede um autógrafo e você sorri e assina um papelzinho que ela te entrega com uma caneta barata de alguma farmácia da região. Os pés continuam andando... As pessoas continuam passando...
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Eu fui pro hotel que estava hospedada aqueles dias. Seriam duas semanas por ali e depois iria de volta pra casa em Santa Monica. Ainda não tinha parado pra pensar em você pra não sentir que fiz a grande porcaria que fiz. O grande estrago estava lá, na minha cara porque um dia desses a gente iria se reencontrar, e como seria? Eu vivo nesse mundo que você também vive e em uma noite de pura picaretagem desse destino que se alimenta de nós, tudo ficaria claro para você e para mim, mas pensar nunca é um caminho fácil. Nem mesmo uma opção. Fiquei quieta lendo meus emails, olhando as minhas fotos e procurando fotos suas no google, a noite passou rápida e eu caí sobre a mesinha do lado do frigobar. Quando o sol nasceu eu lembrei que tinha sido tudo um sonho. Sim, era mais fácil achar que dormi ali, vendo foto sua e sonhei tudo mas logo me ligaram alguns minutos depois das dez da manhã, pra me lembrarem que não tinha feito nada do que deveria ter feito no dia anterior... que sacanagem! Nem quando a gente quer fingir a gente consegue...
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No mesmo dia alguém te encontrou saindo de um prédio qualquer em um bairro qualquer da cidade e acabou tirando algumas fotos que saíram nos tabloids comentando sua cara de "acabado". Você tinha reunião com muita gente aquela tarde para viver um pouco da parte do trabalho burocrático que odiava com todo seu ser, pilhas de contratos, cláusulas e muito falatório, regados a café, conversas paralelas e sonhos aparte... tudo para o brilho se manter vivo, para o sonho se transformar em algo real e para que ninguém perdesse o galã do projeto. Eu tinha que chegar ao meio dia no número mil duzentos e noventa da Avenida das Américas para mostrar alguns textos prontos para a correção do "detector de mentiras" da "editor/publisher" responsável pela minha loucura e pequena liberdade poética (ufa!). Havia parado de pensar em você por alguns instantes ao entrar no escritório mas, sentada esperando para ser atendida, o imaginei entrando pela porta. Talvez para discutir qualquer coisa a respeito de uma matéria sobre algum novo filme ou apenas para dizer que me seguiu esse tempo todo para nos encontrarmos para uma conversa final, um olá-como-vai-você?
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Mas você não entrou.
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Enquanto pegavam um café com leite no Starbucks todo mundo falava e falava e você só concordava. É tão delicado que não perguntava nem se não entendia o que estavam te dizendo, simplesmente aceitava. Estava muito bem acompanhado de algumas outras figuras tão batidas que perdia o tesão pela coisa, a cada segundo você olhava para a porta imensa de vidro e tentava encontrar em todos os rostos passando por ali algum que se parecesse com o meu. Alguém que o lembrasse de mim, "não posso esquecer o rosto dela", você pensava como se ouvisse um mantra se repetindo vertiginosamente apagando tudo que estava a sua volta.
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Mas eu não aparecia.
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O dia passou sem rastros de nada grandioso porque mesmo fechando o grande acordo que acabara de fechar, ainda me ruía a alma não ter falado com você antes de descer naquele elevador. Seu cheiro ainda estava em mim, nem tinha tomado banho! Se pudesse ficar assim mais algum tempo ficaria mas algum dia teria que te exorcizar de mim. Era fim da tarde e meu telefone tocou quando cheguei a rua, atendi e não era nada de importante. Continuei andando e parei pra esfregar meus olhos, infelizmente com isso borrei toda a maquiagem! Você estava do outro lado da rua, a neve tinha dado uma trégua e não podia ser miragem nem enganação da minha mente perturbada, você estava lá e eu não quis sair correndo. Fiquei imóvel e você também.

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