3.2.08

as cartas que escreveram... parte II

"Cara e amada Cecília,



Te escrevo de longe, observando os barcos no cais, o encosto de um casco cansado e gasto pelo tempo e pela vida no mar me enerva, quero-te ao meu lado antes de sempre, para sempre mais do que quero minha vida toda por viver.


Sou jovem, eu sei. Não tão jovem quanto já fui, mas vivo há tanto tempo longe da minha terra, do meu sol e do meu mundo que para mim é como se tivesse passado vidas, séculos.... porém, o tempo não passa por aqui. As pessoas são as mesmas, mesmo quando são novas, não há gente nascendo e todo o calor da Espanha não ata fogo nos meus pés, no meu peito, em minhas costas curvadas... estou um velho! Não o sou, ESTOU!


Cecília, teus cílios ainda dançam piscando por onde vai?


Tuas curvas ainda se mostram belas aos rapazes que por Ipanema passeiam?


Não ligo de tuas curvas estarem mais cheias, de teus cílios mais escaços, teus olhos ainda brilham por debaixo das leves pálpebras?


Te amo com tanto gosto que não sei se amo qualquer outra coisa ou pessoa como amo a ti... hoje o vento deu trégua, ventava muito desde o início da semana e não pude sair para pescar. Não tenho dinheiro como sabes, vivo no apêndice da casa de Dona Holanda, seu marido também é pescador e eu sou seu assistente, "O melhor de todos os tempos!" é como ele se refere a mim! Mas não me encho de orgulho porque não há razão para isso. Só faço o que faço para sobreviver e sonhar contigo. Tu sonhas comigo?


Meu amor, você se lembra de quano queríamos um mundo novo juntos? Quantas passeatas passaram por nós, quantos jovens, como nós, foram separados por um governo corrupto, cego, unilateral e desumano! Quantos? Já não me importa, só te quero apenas, só te espero porque não anseio por mais nada apenas isso, quero dar a ti tudo que foi tirado de nós: nossos sonhos.


Amor meu, Dona Holanda me chama pois já é hora do jantar, a cada garfada vou lembrar da comida que cozinhava para mim...


Espere por mim, logo voltarei e estarei contigo.



De teu eterno amante,


Júlio.
Janeiro de 1968

Andalucía, Espanha"




***


Caro Júlio


Essa quem escreve não é Cecília e sim sua irmã Dulce. Sinto informa-lo que Cecília se casou com Pedro Paulo de Coroña, filho do barão de Coroña e não está mais morando conosco.



Passar bem,


Dulce
São Paulo, Brasil
Março de 1968




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