16.3.09

a devoção segundo consta - pois fez-se o mar de gente...

Aqui está mais um capítulo do "conto" que julguei que fosse ficar só no primeiro devaneio, mas agora me parece que não... a coisa tem forma - e vida própria.

Para a primeira parte CLIQUE AQUI.
Para a segunda, CLIQUE AQUI.
Terceira, AQUI.
Quarta: AQUI.



E nesse post coloco a quinta parte, espero que gostem...


***


Estou sentindo o martírio de uma inoportuna sensualidade. De madrugada acordo cheia de frutos. Quem virá colher os frutos de minha vida? - Clarice Lispector









evantei vôo". O sol parecia ferino, mas compreensivo. Vôo? "Sim, é o que disse, não?". Foi. Por alguns instantes pensei que tudo fosse ser menos... Tudo seria menos, mas seus olhos queimavam e tomavam as rédeas daquele mundo. Eu era, por um segundo apenas, o mundo timbrado em seus ouvidos, revestidos por uma fina camada de fulgor rendido, estava prestes a se realizar em mim. "O Sol...", está em suas mãos, eu sei. "Não." Não? "Ele vive em você". Luí estendia os braços e me chamava para sentar ao seu lado, a qualquer momento levantaríamos vôo, juntos.


***

O tempo havia passado como veio, rápido. Não existia razão para que se olhasse para o relógio, nesse caso o tempo era uma obra de ficção, quando queríamos olhávamos para a janela enquanto o sol se desfazia em inúmeros e dolentes fragmentos de cor laranja, e em um segundo momento a manhã se distraía nos punha a cantar. O melhor foi quando desejamos pela noite. A noite se fez, e as incontáveis estrelas dançavam serenas sobre nossas cabeças. "O sino!", o que tem ele? "É hora de acioná-lo!", pois bem tocamos aquele sino, os dois, quando um se dependurava pela grande corda maciça que vinha daquele pêndulo imenso o outro observava, os olhos se entreolhando por todo o tempo e o som que poderia ter se transformado naquilo que é de mais ensurdecedor virava música. Os tons? Nós os provocavam. A melodia? Nós é que as entoavam e antes de me dar por cansada, Luí me agarraria pela mão e me chamaria de "Sol meu", correndo pelas escadas rústicas e quase arriscada que nos levaria até a porta. Ao tocarmos os pés no imenso pátio externo um mundo de pessoas se fazia presente. Algo de especial, Luí? "Hoje é dia de todos os Santos, sol meu", e deveríamos estar comemorando? "Claro! Todo dia é dia de celebração... La Toussaint, mon petit soleil, La Toussaint...". E com aquelas palavras nos metemos no meio das gentes. Muitos cantavam canções diversas, nenhum grupo entoava as mesmas palavras como nenhuma alma parecia celebrar pura e simplesmente apenas... Algo me intrigava, Luí sabia bem. "Vou te levar onde todos aprendem a se deixar ser..." E isso quer dizer o que? "Que hoje você irá se permitir ser...", tudo correria como gostaria e Luí acabara de arrancar minhas tão perturbantes maquinações mentais das entranhas de minha massa cinzenta, mas aquele amontoado de gente me empurrava apenas para um destino: os intensos cabelos pesados de Luí...


***


A noite se fazia clara. "É a quantidade de velas acesas", as pessoas eram um mar, um oceano de exaltação disforme. Luí me levava enquanto o oceano o induzia. No caminho recolhia os pedaços de mim que perdia mas não havia tempo, Luí me levava em seus ombros de marinheiro. Enquanto o pó das estrelas que ainda eram carregadas por cima de nossas cabeças caiam em delicados galhos, Luí me levava... Uma voz que convinha ressurgiu e todos os mares se abriram enquanto as luzes claras começavam a perder forma, "Chegamos", Onde? Perguntei quieta, o som de minha voz não era familiar ao grande vão repentino que ancorava naquele canto. "O trem...", esperava quieta por resposta daquilo que nunca perguntara, "o trem nunca passa de dia... O que achas?" De que? Dessa vez a voz rendia um assobio do além, "de pegar uma carona..." Luí me olhava de lado, aquele olhar que conhecia bem e que por tanto vivia e esperava dia após dia rever - era o olhar de quem quer seduzir sem ao menos se esforçar - e ele sabia qual seria minha resposta: tanto que não aguardou por nada e levantou sua mão arisca na direção do primeiro vagão que afoito se detinha na estação... "Venha", um fôlego era o bastante e meus pés tocavam outro chão, um chão movediço. Luí me acolhia em terra estrangeira e algo me dizia que ali nada seria como sempre foi.


***