24.3.08

trecho

Ela ouvia do quarto as gargalhadas no quintal.
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Era tarde, pensava, quem estaria acordado a essa hora brincando de pega-pega a meia luz nesse bairro tão quieto e protestante? Sua janela dava pro fundo do quintal, daquele ângulo se via tudo, era um dos pontos privilegiados da vila onde vivia. Muito curiosa, não acendeu a luz com medo de ser pega em flagrante metendo o carão para fora, mas bem devagar puxou a cortina e com um rabo do olho espiou o escuro do campo, procurando por vultos familiares. Espantada parou por alguns instantes apertando os olhos em busca de qualquer um que fosse, mas a tentativa era inútil. Frustrada fechou a cortina e em voz alta indagou - Mas que diabos?
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Se levantou, acendeu a luz do quarto e abriu toda a cortina procurando novamente em vão, alguém que brincasse por ali. Se espantou novamente, nada de gente, mas o barulho continuava feroz. Vozes de meninas e meninos, se divertindo, brincando e correndo, sons de pés e gangorras, mas nada de gente por ali. Estava tudo muito confuso, como haveriam de acreditar nela quando contasse o que acontecera? Ainda perplexa, correu para o corredor para verificar o relógio antigo do pai na parede que marcava duas e quinze da madrugada. Voltou ao quarto apagando a luz e puxando a cadeira para diante da janela, sentou-se esperando por qualquer pista do que estava acontecendo. Horas passavam, os sons continuavam e a esperança se enfraquecia.
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Foi quando, nos primeiros raios de sol atigindo parte do quintal, que os ruidos desapareceram. Perplexa, se levantou da cadeira, empurrou o vidro pesado abrindo toda a janela e apoiou seu corpo no parapeito. Do quintal uma menina muito parecida com ela a observava em pé, com olhos cheios d'água e pés descalços no chão gelado. Uma imensa dor tomou conta, como uma faca afiada, gelada cortando seu peito.
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A menina lá embaixo era ela e com a voz baixa pedia por atenção.
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O dia nasceu e com três toques na porta seu pai a acordou, como sempre cantando bom dia meu anjo e a preparando para mais um dia de vida.